quarta-feira, 23 de março de 2011

DONA ALICE NA INTIMIDADE




As filhas remanescentes do poeta João de Papai, célebre glosador, Maria Julieta e Teresinha Segunda, vivem na companhia de uma prima, Dona Alice Soares de Macedo, viúva sem filhos.

Bem humoradas, atentas às tradições de sua terra, gabam-se da memória prodigiosa. Quando interrogadas sobre o estado civil, respondem prontamente, entre risos. Somos duas coroas sem complexo nem ressentimento, declara Teresinha, recostada na cadeira de pano. Só nos falta o trono, acrescenta Maria Julieta, o cabelo negro cortado à maneira antiga, uma marrafa prendendo-o no alto da cabeça.

Às dez horas da manhã, Dona Alice ainda não se levantou. Na casa modesta e tranqüila a limpeza é a nota dominante. Quadros nas paredes – retratos de pessoas da família, cromos de românticas paisagens européias, e de santos católicos, além de um velho relógio que parou anunciando 9h30. Sobre uma mesa ladeada por jarros contendo arranjos de flores artificiais, numerosos e delicados bibelôs arrumados com gosto artístico.

Muito sociáveis, as três senhoras costumam receber muitas visitas e à noite, costumeiramente, um pequeno grupo se reúne na calçada para comentar os acontecimentos do dia e manter viva a velha tradição colonial do bate-papo diante das residências das pessoas gradas do lugar.



São muito conversadeiras e amáveis. Maria Julieta, por exemplo, informa que o pai criava bodes em Entrerrios, sitio tradicionalmente pertencente à sua família, cem braças de terra que o velho multiplicava criando e plantando. E, com indisfarçável orgulho, Teresinha acrescenta que o pai nunca foi empregado de ninguém. Nunca se aposentou nem entregou os pontos. Nunca ocupou nenhum político. Nunca ficou devendo a ninguém, graças a Deus. Graças a Deus, reitera Teresinha, beijando os dedos em cruz.

Depois de colher as safras, ele alugava as pastagens aos pecuaristas da região... Ainda hoje temos a nossa casinha fechada, exposta à venda, na Rua 16 de Outubro; parte da herança que ele nos deixou...

João Evangelista Soares de Macedo, mais conhecido como João de Papai, nasceu na cidade do Assu em 1891. Filho de José Soares de Macedo [1864-1955] e de Maria Ernestina [1867-1948], se casou em segundas núpcias com Adélia Soares de Macedo [1896-1972], teve o casal João de Papai e Adélia somente sete filhos, Maria Julieta, João Segundo, Zacarias, Teresinha [morta ainda menina] e Teresinha Segunda. Glosador festejado, João de papai não perdia um mote. Improvisava com fluência.

Ao contrário de muitos dos nossos poetas, papai não era pornográfico, nos diz Tetê, os olhos brilhantes sob as grossas lentes de grau. Saliente era Walter de Sá Leitão, acrescenta Bibia. Papai gostava muito de pôquer, jogando habitualmente numa roda com Astério Tinoco, Abel Fonseca e Anderson e Alair Abreu. Bebia, geralmente no bar de Ximenes. Mania ele não tinha, ao contrário da maioria dos velhos. Só o vicio de beber e fumar. Jogar, jogava por esporte. Para se distrair e conviver com os amigos. Em 1920 João de Papai partiu, numa grande aventura marítima, em busca do Pará, que naquele tempo era considerado o fim do mundo.

Bibia lembra que o primeiro avião que passou pelo Assu, levando o presidente da província, Juvenal Lamartine, causou o maior reboliço na cidade. Uma mulher parida, assustando-se com o ronco da máquina voadora, morreu dias depois, segundo a tradição local. Ah, Bibia, diz Tetê interrompendo a irmã. Acabei de me lembrar da glosa do avião, composta por papai...

                                 Na chegada do avião,
                                 Marido perdeu mulher.


                                 Em grande perturbação,
                                 Vi no campo um camarada
                                 Procurando a sua amada
                                 Na chegada do avião...


Bibia, apesar do tremendo mormaço, oferece gentilmente um café ao repórter que, sentado, anota com rapidez os versos recitados por Terezinha.


                                 E em grande confusão
                                 Não sabia nem sequer
                                 Procurando outra qualquer
                                 Em troca da que perdeu.
                                 Pois assim aconteceu,
                                 Marido perdeu mulher.

Finalmente, após fazer a toilette matinal, Dona Alice dá o ar de sua graça, desejando-nos um bom dia. É uma senhora de aparência distinta, de pele muito branca, de ótima aparência, apesar da idade já bastante avançada. Como todos os do seu sangue, Dona Alice tem os olhos azuis translúcidos, vivíssimos e brilhantes. Não sabia que tínhamos visita... Esteja à vontade, diz, sentando-se numa cadeira de balanço. Aceita um cafezinho...? Um guaraná...?

Um filhote de gato, irrequieto e simpático, vem aconchegar-se de encontro às suas pernas, ronronando. Ela se curva um pouco, para acariciá-lo, o sorriso luminoso, de satisfação plena. Os gatos são tão graciosos... Para mim, sem eles, a casa não é um lar... Sempre os apreciei. Além disso, me lembram pequenos tigres. Espero que o senhor não faça objeção à presença deles... Há quem prefira os cães, por sua subserviência aos homens.

Criada no sitio Poassá, por uma tia, Clara de Macedo, Clarinha, que morreu octogenária em 1974, Dona Alice estudou no Grupo Escolar Tenente-coronel José Correia. Nesse tempo, sempre que participavam de solenidades e passeatas cívicas, as alunas do grupo usavam chapelinas [espécie de chapéus] brancas com uma fita azul. Era minha professora Dona Sinhazinha Wanderley, que usava saia e paletó, bengala e cabelo cortado à la garçonne, bem curtinho e repartido ao meio, como o dos rapazes da época. Era duma família muito tradicional, tendo o seu pai sido vice-governador da província por nove vezes. Fomos amigas até sua morte, que ocorreu quando eu estava passando uma temporada no Poassá. Boa professora, muito amante da cidade do Assu, que, no entanto, lhe foi muito ingrata. No fim da vida, era apupada nas ruas... Tinha muitos agregados e ajudava todo mundo. Por isso, chegou a passar necessidade...

Dona Alice irradia ternura e austeridade. Conversa sem descuidar-se do gatinho, que brinca com um novelo de lã. Em dado momento, corre o pequeno felino em direção da porta da rua, causando-lhe grande preocupação. Temo que seja atropelado por um desses motoristas desembestados que se acham donos da rua...

Mas, voltando a Dona Sinhazinha, assunto que pelo visto lhe interessa. Ela nunca saiu daqui para lugar nenhum. Talvez, quando moça, tenha passeado rapidamente por Natal, onde o seu pai exerceu a medicina. Nunca arredava o pé daqui, pelo grande amor que tinha à cidade dos seus antepassados.

Morreu pobre, coitada, comenta Maria Julieta. Toda vida foi pobre, reitera Dona Alice. Mas, no fim, foi pior... Ela criou um bando de sobrinhos e agregados, vendendo versos. Muitas vezes ela mandava bilhetinhos à minha tia Clara, pedindo-lhe dinheiro... Sua casa vivia cheia de “clientes”, lembra Bibia. Ela ajudava todo mundo.

Dona Alice observa que o repórter escreve com a mão esquerda e comenta, sem desmanchar o riso simpático e juvenil. Papai também era canhoto. Escrevia, votava, fazia as quatro operações aritméticas, sempre com a mão esquerda. E, o senhor pode crer, sua letra não era nenhum garrancho...

Filha de Luis José Soares de Macedo, de apelido Sinhô Mãozinha, em decorrência dum acidente que lhe inutilizou a mão, morreu em 1958. Dona Alice perdeu a mãe, Dona Emilia, quando tinha somente cinco anos. O pai, agricultor e proprietário rural, nunca mais se casou.

Dona Alice era afilhada de Dona Fefa, a mãe do poeta João Lins Caldas, de quem guarda ainda agradáveis lembranças. Ela morava perto da casa de Maria Leitão, na rua Moisés Soares, antes chamada Rua das Hortas, a mais antiga rua do Assu. Minha madrinha era uma mulher bem gorda, as pernas mal sustinham o seu corpo pesado. Alvíssima, andava pouco e devagar. Teve apenas dois filhos, Seu Caldas e Seu Lins, um muito diferente do outro... Paciente, boa amiga, a gente ia visitá-la com freqüência. Morava sozinha... Seu Caldas, quando aparecia, conversava muito. Era um grande conversador. Era muito bem informado, mas não confiava nos políticos. Porém, a política era uma de suas paixões. Era sempre motivo de suas conversas.

O Assu era muito diferente nessa época. Não existiam pracinhas nem jardins. As ruas eram bancos de areia solta, que pareciam engolir os nossos passos. Só havia então o monumento à passagem do século. A igreja do Rosário, localizada na praça que leva o seu nome, ainda sem reboco, foi derrubada pelo prefeito Manoelzinho Pessoa Montenegro. O Instituto Padre Ibiapina, aqui perto, ainda não existia e em seu lugar funcionava a Casa de Caridade, fundada pelo Padre Ibiapina, em pagamento duma promessa. Vitima dum naufrágio na costa de Macau, o padre prometeu construir uma casa de caridade na primeira cidade a que chegasse com os sobreviventes. Lá, na Casa de Caridade, os defuntos eram amortalhados e velados até o enterramento que se fazia com grande solenidade. Eu ainda me lembro das freiras que lá viviam reclusas, as irmãs Teresa, Dionísia e Crescência. A casa tinha uma roda de expostos, na qual os enjeitados e os órfãos eram abandonados na calada da noite, quando todos dormiam, para ninguém ficar sabendo da sua origem...

Nesse tempo, quase não havia divertimentos, a não ser as chamadas quatro festas do ano [natal, ano novo, festa do padroeiro São João e da Independência]. Os pastoris e lapinhas, de grande popularidade, se realizavam no patamar da igreja matriz. O povo afluía em grandes ondas. A noticia de um pastoril se espalhava rapidamente, atraindo gente de toda a parte, até mesmo dos sítios mais distantes.

Os costumes eram outros. Ninguém fazia visitas sem mandar um próprio, marcando dia e hora. Recebia-se na sala de visitas, que se abria nessas ocasiões. Pessoas de maior intimidade podiam ser recebidas na sala de jantar. Ninguém saía sem saborear um licor, tomar um cafezinho e mastigar alguma guloseima feita em casa ou encomendada a alguma perita. As crianças eram mantidas longe da conversa dos adultos e, quando se intrometiam onde não eram chamadas, eram severamente advertidas pelos pais e responsáveis. Crianças salientes, ou seja, metidas, eram sempre malvistas e seus pais objeto da recriminação de todos.

Dona Alice conta que se casou em 1940 com um tio, o poeta Abdon de Macedo [1874-1944], que faleceu quatro anos depois. Por causa do parentesco muito próximo, os noivos tiveram de solicitar autorização do bispo para que o compromisso fosse selado segundo as leis da igreja. Antes, a coisa era ainda mais complicada, pois a autorização só podia ser concedida pelo próprio papa.

A diferença de idade entre os dois era tanta que, na rua, as pessoas achavam que o meu marido era o meu pai. Todos se admiravam muito desse casamento. Meu marido era irmão de minha mãe; quando se casou comigo, já era viúvo. Não tivemos descendência... Alice – interrompe-nos Terezinha. – Ele já encheu três páginas de anotações somente com a sua conversa. Que danado para escrever – acrescenta, assombrada. Ora, na brincadeira, ele vai acabar escrevendo um livro somente com a nossa conversa, comenta, num tom jovial, Dona Alice, debruçando-se sobre o meu caderno de notas.

Dona Alice somente fica acanhada quando a interrogo sobre os namoros de antigamente. Porém as primas, muito excitadas, encorajam-na a falar a respeito, o que ela faz rapidamente, em poucas palavras. Namorava-se de longe. Não se pegava na mão do outro, a não ser depois do casamento. Antes do casamento, pegar na mão era algo impensável, a não ser que a moça quisesse ficar mal falada por todos. Ninguém ousava. Ninguém ousava.

Ao enviuvar, Dona Alice passou oito anos morando em Natal, na companhia de Dona Clarinha, sua tia e mãe adotiva. Retornei ao Assu quando ela morreu, solteirona e já bastante idosa. Era, como Dona Sinhazinha, minha madrinha e professora, muito caridosa. Amparava um grande numero de pessoas pobres e carentes que, todas as sextas-feiras, compareciam à sua casa para receber um adjutório. Naquele tempo, quem tinha posses, sentia-se no dever de ajudar aos mais necessitados. Chamava-se a esse costume, então muito difundido entre os católicos abastados, “emprestar a Deus”...

De saborosa leitura o portal FranklinJorge.com
contendo um mágico capitulo sobre o nosso Vale do “Açu, Mitologia e Vivências”!

quinta-feira, 17 de março de 2011

Convite Missa!


Hum ano se passou desde que nossa inesquecível amiga entrou para a galeria da eternidade, imortalizada na lembrança de todos que consigo conviveram.

Tetê será sempre um retrato de esperança
em bonita e afetiva saudade.


Teresinha Segunda Soares de Macêdo

15 de Fevereiro de 1936 - 18 de Março de 2010

Neste 18 de março nos encontramos
 na Igreja Matriz de São João Batista 
a partir das 17 horas
para juntos elevarmos nossas orações
na memória de sua aura!