As filhas remanescentes do poeta João de Papai, célebre glosador, Maria
Julieta e Teresinha Segunda, vivem na companhia de uma prima, Dona Alice Soares
de Macedo, viúva sem filhos.
Bem humoradas, atentas às tradições de sua terra, gabam-se da memória
prodigiosa. Quando interrogadas sobre o estado civil, respondem prontamente,
entre risos. Somos duas coroas sem complexo nem ressentimento, declara Teresinha, recostada na cadeira de pano. Só nos
falta o trono, acrescenta Maria Julieta, o cabelo
negro cortado à maneira antiga, uma marrafa prendendo-o no alto da cabeça.
Às dez horas da manhã, Dona Alice ainda não se levantou. Na casa modesta
e tranqüila a limpeza é a nota dominante. Quadros nas paredes – retratos de
pessoas da família, cromos de românticas paisagens européias, e de santos
católicos, além de um velho relógio que parou anunciando 9h30. Sobre uma mesa
ladeada por jarros contendo arranjos de flores artificiais, numerosos e
delicados bibelôs arrumados com gosto artístico.
Muito sociáveis, as três senhoras costumam receber muitas visitas e à
noite, costumeiramente, um pequeno grupo se reúne na calçada para comentar os
acontecimentos do dia e manter viva a velha tradição colonial do bate-papo
diante das residências das pessoas gradas do lugar.
São muito conversadeiras e amáveis. Maria Julieta, por exemplo, informa que o pai criava bodes em Entrerrios, sitio
tradicionalmente pertencente à sua família, cem braças de terra que o velho
multiplicava criando e plantando. E, com indisfarçável orgulho, Teresinha acrescenta que o pai nunca foi
empregado de ninguém. Nunca se aposentou nem entregou os pontos. Nunca ocupou
nenhum político. Nunca ficou devendo a ninguém, graças a Deus. Graças a Deus,
reitera Teresinha, beijando os dedos em cruz.
Depois de colher as safras, ele alugava as pastagens aos pecuaristas da
região... Ainda hoje temos a nossa casinha fechada, exposta à venda, na Rua 16
de Outubro; parte da herança que ele nos deixou...
João Evangelista Soares de Macedo, mais conhecido como João de Papai,
nasceu na cidade do Assu em 1891. Filho de José Soares de Macedo [1864-1955] e
de Maria Ernestina [1867-1948], se casou em segundas núpcias com Adélia Soares
de Macedo [1896-1972], teve o casal João de Papai e Adélia somente sete filhos, Maria Julieta, João Segundo,
Zacarias, Teresinha [morta ainda menina] e Teresinha Segunda. Glosador
festejado, João de papai não perdia um mote. Improvisava com fluência.
Ao contrário de muitos dos nossos poetas, papai não era pornográfico, nos diz Tetê, os olhos brilhantes sob as grossas
lentes de grau. Saliente era Walter de Sá Leitão, acrescenta Bibia. Papai gostava muito de pôquer,
jogando habitualmente numa roda com Astério Tinoco, Abel Fonseca e Anderson e
Alair Abreu. Bebia, geralmente no bar de Ximenes. Mania ele não tinha, ao
contrário da maioria dos velhos. Só o vicio de beber e fumar. Jogar, jogava por
esporte. Para se distrair e conviver com os amigos. Em 1920 João de Papai
partiu, numa grande aventura marítima, em busca do Pará, que naquele tempo era
considerado o fim do mundo.
Bibia lembra que o primeiro avião que passou pelo Assu, levando o
presidente da província, Juvenal Lamartine, causou o maior reboliço na cidade.
Uma mulher parida, assustando-se com o ronco da máquina voadora, morreu dias
depois, segundo a tradição local. Ah, Bibia, diz Tetê interrompendo a irmã.
Acabei de me lembrar da glosa do avião, composta por papai...
Na chegada do avião,
Marido perdeu mulher.
Em grande perturbação,
Vi no campo um camarada
Procurando a sua amada
Na chegada do avião...
Bibia, apesar do tremendo mormaço, oferece gentilmente um café ao
repórter que, sentado, anota com rapidez os versos recitados por Terezinha.
E em grande confusão
Não sabia nem sequer
Procurando outra qualquer
Em troca da que perdeu.
Pois assim aconteceu,
Marido perdeu mulher.
Finalmente, após fazer a toilette matinal, Dona Alice dá o ar de sua
graça, desejando-nos um bom dia. É uma senhora de aparência distinta, de pele
muito branca, de ótima aparência, apesar da idade já bastante avançada. Como
todos os do seu sangue, Dona Alice tem os olhos azuis translúcidos, vivíssimos
e brilhantes. Não sabia que tínhamos visita... Esteja à vontade, diz,
sentando-se numa cadeira de balanço. Aceita um cafezinho...? Um guaraná...?
Um filhote de gato, irrequieto e simpático, vem aconchegar-se de
encontro às suas pernas, ronronando. Ela se curva um pouco, para acariciá-lo, o
sorriso luminoso, de satisfação plena. Os gatos são tão graciosos... Para mim,
sem eles, a casa não é um lar... Sempre os apreciei. Além disso, me lembram
pequenos tigres. Espero que o senhor não faça objeção à presença deles... Há
quem prefira os cães, por sua subserviência aos homens.
Criada no sitio Poassá, por uma tia, Clara de Macedo, Clarinha, que
morreu octogenária em 1974, Dona Alice estudou no Grupo Escolar Tenente-coronel
José Correia. Nesse tempo, sempre que participavam de solenidades e passeatas
cívicas, as alunas do grupo usavam chapelinas [espécie de chapéus]
brancas com uma fita azul. Era minha professora Dona Sinhazinha Wanderley, que
usava saia e paletó, bengala e cabelo cortado à la garçonne, bem curtinho e
repartido ao meio, como o dos rapazes da época. Era duma família muito
tradicional, tendo o seu pai sido vice-governador da província por nove vezes.
Fomos amigas até sua morte, que ocorreu quando eu estava passando uma temporada
no Poassá. Boa professora, muito amante da cidade do Assu, que, no entanto, lhe
foi muito ingrata. No fim da vida, era apupada nas ruas... Tinha muitos
agregados e ajudava todo mundo. Por isso, chegou a passar necessidade...
Dona Alice irradia ternura e austeridade. Conversa sem descuidar-se do
gatinho, que brinca com um novelo de lã. Em dado momento, corre o pequeno
felino em direção da porta da rua, causando-lhe grande preocupação. Temo que
seja atropelado por um desses motoristas desembestados que se acham donos da
rua...
Mas, voltando a Dona Sinhazinha, assunto que pelo visto lhe interessa.
Ela nunca saiu daqui para lugar nenhum. Talvez, quando moça, tenha passeado
rapidamente por Natal, onde o seu pai exerceu a medicina. Nunca arredava o pé
daqui, pelo grande amor que tinha à cidade dos seus antepassados.
Morreu pobre, coitada, comenta Maria Julieta. Toda vida foi pobre, reitera Dona Alice. Mas, no fim, foi pior... Ela
criou um bando de sobrinhos e agregados, vendendo versos. Muitas vezes ela
mandava bilhetinhos à minha tia Clara, pedindo-lhe dinheiro... Sua casa vivia
cheia de “clientes”, lembra Bibia. Ela
ajudava todo mundo.
Dona Alice observa que o repórter escreve com a mão esquerda e comenta,
sem desmanchar o riso simpático e juvenil. Papai também era canhoto. Escrevia,
votava, fazia as quatro operações aritméticas, sempre com a mão esquerda. E, o
senhor pode crer, sua letra não era nenhum garrancho...
Filha de Luis José Soares de Macedo, de apelido Sinhô Mãozinha, em
decorrência dum acidente que lhe inutilizou a mão, morreu em 1958. Dona Alice
perdeu a mãe, Dona Emilia, quando tinha somente cinco anos. O pai, agricultor e
proprietário rural, nunca mais se casou.
Dona Alice era afilhada de Dona Fefa, a mãe do poeta João Lins Caldas,
de quem guarda ainda agradáveis lembranças. Ela morava perto da casa de Maria
Leitão, na rua Moisés Soares, antes chamada Rua das Hortas, a mais antiga rua
do Assu. Minha madrinha era uma mulher bem gorda, as pernas mal sustinham o seu
corpo pesado. Alvíssima, andava pouco e devagar. Teve apenas dois filhos, Seu
Caldas e Seu Lins, um muito diferente do outro... Paciente, boa amiga, a gente
ia visitá-la com freqüência. Morava sozinha... Seu Caldas, quando aparecia,
conversava muito. Era um grande conversador. Era muito bem informado, mas não
confiava nos políticos. Porém, a política era uma de suas paixões. Era sempre
motivo de suas conversas.
O Assu era muito diferente nessa época. Não existiam pracinhas nem
jardins. As ruas eram bancos de areia solta, que pareciam engolir os nossos
passos. Só havia então o monumento à passagem do século. A igreja do Rosário,
localizada na praça que leva o seu nome, ainda sem reboco, foi derrubada pelo
prefeito Manoelzinho Pessoa Montenegro. O Instituto Padre Ibiapina, aqui perto,
ainda não existia e em seu lugar funcionava a Casa de Caridade, fundada pelo
Padre Ibiapina, em pagamento duma promessa. Vitima dum naufrágio na costa de
Macau, o padre prometeu construir uma casa de caridade na primeira cidade a que
chegasse com os sobreviventes. Lá, na Casa de Caridade, os defuntos eram
amortalhados e velados até o enterramento que se fazia com grande solenidade.
Eu ainda me lembro das freiras que lá viviam reclusas, as irmãs Teresa,
Dionísia e Crescência. A casa tinha uma roda de expostos, na qual os enjeitados
e os órfãos eram abandonados na calada da noite, quando todos dormiam, para
ninguém ficar sabendo da sua origem...
Nesse tempo, quase não havia divertimentos, a não ser as chamadas quatro
festas do ano [natal, ano novo, festa do padroeiro São João e da Independência]. Os pastoris e
lapinhas, de grande popularidade, se realizavam no patamar da igreja matriz. O
povo afluía em grandes ondas. A noticia de um pastoril se espalhava
rapidamente, atraindo gente de toda a parte, até mesmo dos sítios mais
distantes.
Os costumes eram outros. Ninguém fazia visitas sem mandar um próprio,
marcando dia e hora. Recebia-se na sala de visitas, que se abria nessas
ocasiões. Pessoas de maior intimidade podiam ser recebidas na sala de jantar.
Ninguém saía sem saborear um licor, tomar um cafezinho e mastigar alguma
guloseima feita em casa ou encomendada a alguma perita. As crianças eram
mantidas longe da conversa dos adultos e, quando se intrometiam onde não eram
chamadas, eram severamente advertidas pelos pais e responsáveis. Crianças salientes,
ou seja, metidas, eram sempre malvistas e seus pais objeto da recriminação de
todos.
Dona Alice conta que se casou em 1940 com um tio, o poeta Abdon de
Macedo [1874-1944], que faleceu quatro anos depois. Por causa do parentesco
muito próximo, os noivos tiveram de solicitar autorização do bispo para que o
compromisso fosse selado segundo as leis da igreja. Antes, a coisa era ainda
mais complicada, pois a autorização só podia ser concedida pelo próprio papa.
A diferença de idade entre os dois era tanta que, na rua, as pessoas
achavam que o meu marido era o meu pai. Todos se admiravam muito desse
casamento. Meu marido era irmão de minha mãe; quando se casou comigo, já era
viúvo. Não tivemos descendência... Alice – interrompe-nos Terezinha. – Ele já encheu três páginas de
anotações somente com a sua conversa. Que danado para escrever – acrescenta,
assombrada. Ora, na brincadeira, ele vai acabar escrevendo um livro somente com
a nossa conversa, comenta, num tom jovial, Dona Alice, debruçando-se sobre o
meu caderno de notas.
Dona Alice somente fica acanhada quando a interrogo sobre os namoros de
antigamente. Porém as primas, muito excitadas, encorajam-na a falar a respeito,
o que ela faz rapidamente, em poucas palavras. Namorava-se de longe. Não se
pegava na mão do outro, a não ser depois do casamento. Antes do casamento,
pegar na mão era algo impensável, a não ser que a moça quisesse ficar mal
falada por todos. Ninguém ousava. Ninguém ousava.
Ao enviuvar, Dona Alice passou oito anos morando em Natal, na companhia
de Dona Clarinha, sua tia e mãe adotiva. Retornei ao Assu quando ela morreu,
solteirona e já bastante idosa. Era, como Dona Sinhazinha, minha madrinha e
professora, muito caridosa. Amparava um grande numero de pessoas pobres e carentes
que, todas as sextas-feiras, compareciam à sua casa para receber um adjutório.
Naquele tempo, quem tinha posses, sentia-se no dever de ajudar aos mais
necessitados. Chamava-se a esse costume, então muito difundido entre os
católicos abastados, “emprestar a Deus”...
De saborosa leitura o portal FranklinJorge.com
contendo um mágico capitulo sobre o nosso Vale do “Açu, Mitologia e Vivências”!
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